Resenha Coral - Ensaladas - Hespérion XX & Jordi Savall
Considero importante
ouvir os principais interpretes da música coral. Acho que são um exemplo de
como executá-la. Por isso, trago a minha primeira resenha de música gravada.
Nesta oportunidade, farei a resenha de um de um disco interpretado por Jordi
Savall sobre um dos gêneros de música coral que mais gosto: a ensalada.
Leia também: Existe
resenha de música coral?
Ensaladas
Ensalada é um gênero
oriundo da península Ibérica. A tradução literal da palavra é
"salada", pois faz uma mistura de várias canções e poesias com
idiomas diversos em uma só música. Seria algo equivalente ao mashup dos dias de
hoje, mas com um toque modal típico da renascença, com a obrigação de criar,
apenas com música, uma estória na mente do ouvinte e ser divertida.
Há uma ampla
discussão sobre a ensalada ser um gênero de música dramática. A definição é controversa e os especialistas
não concordam em totalidade. Alguns consideram que o gênero tinha um quê
teatral, mas os últimos estudos apontam que o gênero é exclusivamente musical.
As ensaladas são
composições escritas para canto a quatro, cinco e/ou seis vozes. Não há
evidências de trechos falados ou qualquer tipo de encenação das obras. Também
não há indícios do uso de instrumentos para a execução. Trata-se de um gênero
feito para cantar em grupo, seguindo a moda dos madrigais do século XVI.
"se mira con la
mente, dov'entra per l'orecchie, e non per gl'occhi" (se vê pela mente e
entra pelos ouvidos, não pelos olhos). Orazio Vecchi - compositor renascentista
italiano.
Hespérion XX & Jordi Savall
Jordi Savall é um
músico catalão que se dedica à música antiga. Um dos principais grupos
conduzidos por ele é o Hespérion XX, hoje, Hespérion XXI.
O Hespérion XX (ou
XXI), é um conjunto com foco na execução de obras da península Ibérica. Recebeu
este nome pois, na antiguidade, os gregos chamavam a península Ibérica e
Itálica de Hespéria.
A orquestra é rica
em instrumentos antigos: gambas, guitarras, alaúdes, chitarrones, cítaras e
muitos outros modelos de instrumentos de cordas; trompetes, sacabuchas, trompas
e outros metais de vários tipos; percussões diversas; um belo conjunto de cantores
de coro e solistas; e um regente muito competente. Uma orquestra digna de um
Rei. Será que no século XVI existia um grupo assim?
Mateo Flecha
As ensaladas mais
famosas são de Mateo Flecha, o Velho. Chamamos de o Velho, pois seu sobrinho
nos deixou o seu legado copiando sua obra. Mateo Flecha, o Jovem, ficou
conhecido não apenas por disseminar as obras de seu tio, mas também pelas suas
próprias. Seu sucesso como compositor foi menor, mas a contribuição para a
memória do gênero é imensurável. Talvez por esse motivo as ensaladas do Velho
sejam as mais famosas.
As ensaladas de
Flecha não foram as primeiras a serem compostas. Os primeiros exemplares são
assinados pelo compositor português Gil Vicente e mesclam a língua portuguesa,
outras línguas ibéricas e o latim.
No disco de Savall
estão gravadas três ensaladas de Mateo Flecha, o Velho: La Justa , El Fuego e
La Bomba.
Arranjo
Não há nenhuma
comprovação sobre o uso de acompanhamento instrumental nas ensaladas. Como
vimos acima, a escrita foi feita exclusivamente para voz. Entretanto, era comum
utilizar desta disposição, dando liberdade do uso das linhas do canto na
orquestra. Boa parte do Orfeu de Monteverdi é escrito assim e cabe ao regente
distribuir as linhas das vozes nos instrumentos disponíveis. Jordi Savall
insere acompanhamento às ensaladas e também executa algumas apenas com
instrumental.
Algumas gravações
ficaram mais longas pelas repetições, outras mais curtas pelos cortes. La Bomba
ficou tão curta que é impossível criar na mente a estória do texto.
O disco é de 1987 e
muita coisa se pesquisou após a sua gravação. Os arranjos são de muita
qualidade e as interpretações admiráveis. Trata-se de música ibérica de
qualidade.
A seguir, farei
algumas considerações sobre as obras do disco. Aconselho que ouça as músicas
com a letra em mãos. No wikisource espanhol é possível ter acesso a todas as
letras das ensaladas expostas aqui. Acesse em: https://es.wikisource.org
A gravação no Spotify pode ser ouvida aqui:
A gravação no Deezer
aqui:
La Justa
O álbum inicia com
La Justa. Ensalada de vigor, trata da luta de dois personagens bíblicos contra
Lúcifer. Primeiro Adão e, em seguida, Jesus. A imagem é de uma luta de
cavaleiros, cada um com sua lança, indo em direção ao outro como nas cenas
medievais de cinema. Esse esporte se chama justa, daí o nome da ensalada.
Adão perde a luta,
mesmo com o apoio de vários santos e profetas. Jesus, por sua vez, vence, com
direito a um "Vade retro, Satanás!".
La Justa tem todas
as características de uma ensalada: letras em idiomas ibéricos e latim, muitas
onomatopeias imitando o som de trombetas e trechos vivos que evocam danças. É
possível traçar muitas cenas na mente e fazer uma salada de personagens e situações.
Jordi Savall usa a
orquestra com sabedoria: metais para as chamadas a luta, alaúdes para reflexões
sobre a derrota de Adão. Os instrumentos antigos dão mais beleza a cena criada.
A chamada inicial lembra o La Guerre de Janequin.
La Justa é o início
que todos querem para um CD: bela e vigorosa, com estória envolvente e
divertida.
Não irei abordar as
obras instrumentais do álbum pela ensalada ser um gênero para ser cantado. As
interpretações de Batalha de Morales e Ensalada de Sebasian de Heredia estão
ótimas e funcionam muito bem como entremezes, entretanto, os aspectos que trato
aqui não possuem conexão com essa maneira de execução.
El Fuego
El Fuego é uma
ensalada que aborda o fogo. Inicia dizendo que os pecadores corram e joguem
água no fogo, como num incêndio. A rítmica e a repetição da palavra
"fuego" realmente me faz ver labaredas. Em seguida, é esclarecido que
o fogo que se sente é um maldito pecado e quanto antes jogar água nele, melhor
para alcançar a salvação.
Importante observar
que, embora de cunho popular, as ensaladas eram direcionadas aos nobres e, por
isso, possuem a preocupação de legitimar os modelos governamentais e a relação
de classes da época, obtendo maior acepção. Por isso a constante ligação com a
religião católica e o uso do latim nos momentos em que a poesia se direciona a
palavra de Deus.
Jordi Savall sabe
dar o tom festivo às partes vivas e fúnebre às partes dramáticas. Ao evidenciar
o caso de Nero em Roma, quando nada fez diante das mortes durante o incêndio,
usa violas da gamba em ambiência soturna e as vozes ficam lentas e ligadas. Quando
fala sobre a correria para apagar o fogo, faz uso de percussão e aproveita as
onomatopeias que simulam campanas para replicá-las nos instrumentos de metal,
dando uma ambiência instrumental única.
Sobre onomatopeias
que simulam o toque da gaita de foles, desvenda que a água da salvação, na
verdade é Jesus Cristo: apenas ele pode nos salvar do fogo do pecado. No fim,
apresenta uma lição em latim: "aquele que beber dessa água, jamais sentirá
sede".
La Bomba
La Bomba é uma
ensalada que narra um naufrágio. Infelizmente no álbum de Jordi Savall a música
está incompleta, com apenas um pequeno trecho cantado agradecendo o nascimento
de Cristo e sua benevolência diante dos homens.
Jordi Savall usa da
temática de um trecho que simula uma guitarra em ponteado de maneira singular.
O texto cantado nessa parte bendiz Jesus Cristo, que, com piedade nos livra do
mal e, também, bendiz aqueles que o seguem.
Não falarei muito
sobre esta obra nesta resenha, pois planejo trazer outros discos com ensaladas
onde La Bomba está completa. Fique atento as próximas postagens sobre o assunto
para mais informações.
Jordi
Savall sem dúvidas é um dos grandes interpretes da atualidade e sua
contribuição na produção de música antiga é única. Vale a pena navegar nos
repositórios buscando suas gravações pois são únicas. Divirta-se!
O que achou da
resenha? Deixe um comentário com a sua opinião!
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário